quarta-feira, 14 de maio de 2014

Izulina Xavier, em Corumbá, Arte aos 88 anos

Izulina Xavier, em Corumbá, Arte aos 88 anos



 




A residência na Rua Cuiabá, 588, centro de Corumbá, é tomada de esculturas. As paredes são cobertas de araras, onças, beatos, anjos. Mas as figuras não ilustram as paredes, são as paredes.

As vigas formam pássaros, as colunas representam mulheres rezando. O Pantanal está convertido em pedra.

Não há como passar reto e fingir desinteresse. Destoa de toda a vizinhança pela cor e estranheza. É um estupor, como se a casa Milà de Gaudí aparecesse no meio de um condomínio popular.

A responsável pela santa doidice é Izulina Xavier, 88 anos, a Izu, uma das maiores artistas do país, uma espécie de Cora Coralina das esculturas, que começou a erigir seu acervo somente aos 57 anos.

Autodidata, curiosa, ávida, jamais se sentou numa cadeira em sala de aula. A pobreza não permitiu.

Aprendeu a modelar o barro em sua cidade natal, Simões (PI). Como a água era escassa, usava a lama pisada pelo gado para produzir pratos, vasos e colheres e ajudar a renda da família. Se sobrava tempo, criava seus próprios brinquedos: miniaturas de cachorro, gato e jumento.

— A dificuldade para conseguir água pela seca me fez ser rápida e ágil na feitura dos objetos. Não jogava fora nenhuma gota. Meu trabalho é fruto da sede — afirma ela.

Teve que surrar as mãos na adolescência como plantadora de algodão em Valparaíso (SP). Veio para a região de Corumbá prometida a casamento. De 1944 a 1952, morou com o minerador José Xavier e geraram quatro filhos.

Enquanto exercia o papel de dona de casa e cuidava das crianças, escreveu seis romances, cinco cordéis e um livro infantil. Mas logo encontrou a desilusão literária.

— As palavras chegavam atrasadas perto das esculturas. Ninguém me lia, decidi então criar histórias com as pedras para o mundo inteiro ver — diz, explicando a transição de um suporte para outro.

O primeiro trabalho adulto foi um sapo, que guarda como relíquia em cima da mesa da varanda.

Antes da morte do marido, a família adquiriu três fazendas e 12 mil cabeças de gado. O patrimônio garantiu tranquilidade durante sessenta anos de viuvez.

— Só fica rico quem não sabe gastar dinheiro — teoriza.

A solidão repentina serviu para estimular sua criatividade. Transformou a casa em museu vivo, ativo, mutável. Suas crianças se acostumaram a contar o esconde-esconde atrás de estátuas no pátio, a subir em cavalos de cimento, a levar susto com rostos de cal no escuro.

Ela comprou uma casa feia de propósito, para valorizar sua intervenção.

— O que acho feio embelezo. Não me dou com facilidades. O que me interessa é inventar beleza — comenta.
Cenas bíblicas e caseiras se mesclam em sua casa. Há um retrato de sua família inteira esculpida em longo painel no pátio. É uma espécie de Primeira Ceia para se contrapor às tristezas das despedidas.

— Conservei nossa imagem quando éramos jovens — acrescenta. — Melhor do que foto é o busto de quem a gente ama. Posso tocar no relevo dos traços.

Nos fundos do casarão, construiu um painel de 22 quadros de 3m por 2,5 m, em que descreve o nascimento de Corumbá até o começo do século XIX.

Desconhecida no Brasil e festejada em Mato Grosso do Sul, ela não despreza desafios. Levantou um Cristo de 12 metros no Morro São Felipe, observatório privilegiado, onde é possível visualizar a fronteira da cidade brasileira com a Bolívia. É de lá que Manoel de Barros, seu conterrâneo pantaneiro, descreve que o sol é uma gema de ovo: “A gema vai descendo até se desmanchar atrás do morro (Se é tempo de chover, desce um barrado escuro por toda a extensão dos Andes e tampa a gema). Aquele morro bem que entorta a bunda da paisagem! Deste lado é Corumbá. Além de cansanção, nós temos cuiabanos, chiquitanos, paus-rodados e turcos. Todos por cima de uma pedra branca enorme que o Rio Paraguai borda e lambe.”

O corcovado sul-matogrossense mobilizou turistas, que antes se restringiam a se deslocar pelos sobrados do porto e pela rota de pesca.

— Montei Jesus em quatro partes. Para encaixar. Quase fui crucificada de tanto esforço — lembra.

Além do Cristo, levantou uma via-sacra no mirante do morro com estátuas em tamanho natural.

— Nunca contei quantas obras já produzi. Contar é morrer — revela.

Por semana, surgem seis ônibus de interessados em conhecer seu prodigioso acervo.

Segue a receita de São Francisco de Assis, seu santo protetor. Abre os braços aos pássaros e a porta a todos:

— Francisco é meu santo. Porque vi quando pequena, aos dez anos, uma fogueira de estátuas católicas no centro da praça, feita por revoltosos para desafiar a Igreja. Esperei a família dormir e retirei um Francisco das chamas. Nossa amizade nasceu no perigo.

Seu lema é a casa é de Deus, a sombra é minha.

Uma de suas decepções aconteceu com o músico Gilberto Gil, que encomendou uma estátua e não veio ver e muito menos levar. Está encalhada no quintal desde 2004, cantando para as teias de aranhas entre as árvores.

— Aprontei a estátua em uma semana, para impressionar Gil, e só me decepcionei. É a desmoralização do artista não ser reconhecido pelos seus iguais — desabafa.

Que ninguém estranhe que um dia a esquisita casa da rua Cuiabá vire patrimônio da Humanidade pela Unesco. Um dia, que não seja tarde. Nem demorado como Gilberto Gil.

— O certo é vir do pó e voltar para o pó, eu fico nele — ri dona Izu.


/blogs/fabricio-carpinejar/

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